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"La Manche" para os franceses, e "English Channel" para os ingleses. Dois nomes diferentes para o mesmo lugar, conforme o lado em que se está. De certa forma isto representa bem o significado do canal que separa os dois países, e ilustra de forma divertida a eterna e notória rivalidade entre ingleses e franceses. Nos países de língua portuguesa esta faixa de água ligando o Oceano Atlântico ao Mar do Norte é conhecida como Canal da Mancha, e se você vai viajar entre França e Inglaterra, as chances são de cem por cento que tenha que atravessar este canal. Seja por cima ou por baixo.

   

A primeira vez que atravessamos o canal foi em uma excursão de ônibus, e vimos impressionados, o gigantesco navio engolir nosso ônibus, assim como diversos outros, além de grandes caminhões de carga e dezenas de automóveis. Embarcaram também centenas de pessoas a pé ou com bicicletas. Conta-se que este é o trecho marítimo mais movimentado do mundo, e deve ser verdade, porque o movimento de chegada e saída destes navios é impressionante, e dá a impressão de não cessar nunca. Enquanto um navio parte, outro já está chegando, outro se aproxima e a partida de mais um é anunciada. Todos os dias do ano.


Ferry da P&O partindo de Dover

 Vídeo: Ferry zarpando de Dover


Deck superior de ferry partindo da França

Depois daquela nossa viagem de estréia, atravessamos o canal por conta própria em outras ocasiões, por conta própria e pegamos desde dias com céu azul e temperatura agradável até dias frios, com bastante vento e mar agitado. Nestas horas e olhando para as águas em volta, é difícel não lembrar de todos daqueles que se lançam às águas da Mancha para atravessar o Canal a nado. Diversos nadadores já conseguiram completar esta proeza, sendo que a primeira pessoa a conseguir realizar esta proeza foi o britânico Matthew Webb em 1875, que completou a travessia em pouco menos de 22 horas, enquanto diversos outros, infelizmente, morreram tentando completar o percurso. O canal tem aproximadamente 560 quilômetros de comprimento, sendo que seu trecho mais estreito tem 33 quilômetros, situado entre as cidades de Dover (Inglaterra) e Calais (França), sendo este, portanto, o trecho por onde circula a maior parte das embarcações ligando os dois países.

 

Uma das marcas registradas do litoral inglês, visível para quem se aproxima ou afasta de Dover, são seus rochedos brancos, que alguns confundem, à distância, com imensas dunas de areia. As primeiras travessias eram uma temeridade. Os portos eram rasos, pequenos e sem proteção contra tempestades. Os navios precisavam esperar as marés altas para aportar. Em 1850 quase todos os navios eram a vela e com poucos recursos de segurança. Os passageiros do Canal da Mancha faziam travessias demoradas, perigosas e sujeitas a muito enjôo. Em meados do século 19, as cidades francesas de Boulogne e Calais começaram uma competição entre si para ver qual seria a mais bem sucedida no estabelecimento de uma rota marítima com a Inglaterra.  O interesse se justificava pelo desenvolvimento e lucros que o movimento trazia às cidades. Boulogne saiu na frente, mas Calais depois levou a melhor. Na Inglaterra era a mesma coisa, com Folkstone e Dover competindo entre si.


Rochedos de Dover, Inglaterra

 


Ferry da Stena Link

Os ferries que fazem a travessia do Canal, embora seja uma jornada rápida, são  dotados de todo conforto. Quase todos tem a bordo restaurante, confortáveis poltronas, cambio, duty free  e atrações para passar o tempo, inclusive específicas para crianças. Mas o melhor lugar para se estar no momento da partida, especialmente se estiver fazendo um dia bonito, é no convés superior. As vezes pode ser difícil descobrir o caminho para chegar até lá, entre tantas escadas e compartimentos, mas vale a pena ficar lá e, enquanto se aguarda a hora de partir, curtir os veículos entrando, as equipes de terra - frenéticas como formigas em torno de uma minhoca - e depois quando barco zarpa, a visão do porto se distanciando cada vez mais, e o mar aberto pela frente.  Depois que zarpar, desça a escada e vá até o restaurante, o segundo melhor lugar para se estar durante a travessia!

 Vídeo: Trevessia do Canal da Mancha em Onibus

Algumas pessoas nos perguntem como proceder para fazer a travessia num destes navios que transportam veículos (conhecidos como ferries) e a resposta é que nada poderia ser mais fácil e organizado. Bilhetes podem ser comprados online e preços variam de acordo com o tipo de carro (veículos maiores pagam mais), número de passageiros, dia e horário da travessia (horários de pico são mais caros). Quem ainda não tem estes dados também não tem porque se preocupar. Se estiver na França, à medida que se aproxima do litoral (a cidade de Calais), diversas placas da auto-estrada indicam o local de embarque, geralmente com inscrições tipo "Car Ferries" ou "Tunnel Sous la Manche".


Garegem de Ferry da Stena Link.

Se estivar na Inglaterra é semelhante, ao se aproximar de Dover basta seguir as placas indicando "Car Ferries" ou "Channel Tunnel". Ao chegar no terminal de embarque, estacione, vá até o escritório, informe o tipo de carro e número de passageiros, compre o bilhete, volte para seu carro, siga as setas indicando o local de embarque, entre na fila de automóveis, aguarde a fila começar a andar, entre no navio, estacione no local indicado pelos "flanelinhas de bordo " e não esqueça de anotar o andar onde estacionou e número da vaga, para não correr o risco de ao voltar não lembrar onde deixou seu carro. Os estacionamentos destes navios são tão grandes que às vezes lembram estacionamentos de shoppings.

Tranque o veículo, suba até o convés (não é permitido permanecer nos veículos durante a travessia) e curta a travessia. Quando a embarcação estiver se aproximando do destino (geralmente vinte minutos antes da chegada prevista), você ouvirá um aviso pelo sistema de auto falantes (em inglês e francês) informando que os motoristas devem retornar ao seu veículo. Se você não entende bem estas línguas não tem problema, você vai perceber que muita gente vai levantar nesta hora e ir em direção às escadas que conduzem às garagens. Volte ao lugar onde deixou seu carro (você anotou direitinho onde ele estava, certo?) Saia do navio seguindo a orientação dos "flanelinhas de bordo" , pegue a estrada e siga em frente. Simples não?

 


Farol sobre os rochedos de Dover

 

O Canal da Mancha é famoso por suas tempestades, pela freqüente neblina e pouca visibilidade e até mesmo a invasão da Normandia pelas tropas aliadas, realizada no "Dia D", precisou ser adiada 24 horas devido a uma destas tempestades. Felizmente nunca pegamos um temporal nessa rota e o máximo de aventura que tivemos a bordo foi sentir o navio jogando de um lado para outro a ponto de precisarmos andar com cuidado para não derrubar o prato de almoço. 

A primeira linha regular de ferries entre Dover e Calais começou a operar em 1931. Historicamente, foi o Canal da Mancha que salvou a Inglaterra de ser invadida em mais de uma ocasião, tanto pelas tropas de Napoleão, como pelos nazistas.  O Canal sempre foi a primeira barreira de proteção do país em relação ao resto do continente Europeu, e por isso a construção de uma ponte ou túnel ligando a Inglaterra ao resto do continente, um projeto sonhado por muitos, era vista por outros com desconfiança e receio.

É mais barato fazer a travessia durante a noite, e mais caro entre 10 e 16 horas, quando ocorre o pique de movimento. Bilhetes de ida e volta tem desconto e passageiros viajando sem veículos pagam bem mais barato. 

 

Algumas pessoas não sabem, mas também é possível atravessar o Canal da Mancha "a pé", ou seja, sem estar a bordo de um veículo sobre rodas. Esta opção é utilizada por quem, por exemplo, faz a devolução do carro de aluguel antes de embarcar, por quem chega de trem até Calais ou Dover e quer pegar o navio e seguir viagem para o outro lado do Canal. Seja qual for seu caso isto também é fácil. Grande parte das locadoras de veículos oferecem transporte grátis até o terminal dos ferries. E para chega a Calais ou Dover trem, as empresas de ferries também disponibilizam transporte de ônibus, grátis, até o terminal de embarque.


Ondas deixadas pelo ferry

 



Ferry da P&O atravessando o Canal

Certa vez estávamos com um carro de aluguel que tínhamos que devolver em Calais.  Ao fazer a reserva escolhemos devolver o carro no próprio terminal de ferries, o que nos facilitou muito as coisas. Depois de entregar o carro, compramos o bilhete no balcão da P&O, e ao chegar na Inglaterra pegamos o ônibus gratuito oferecido pela P&O até a estação de trens de Dover (situado a cinco minutos do terminal), onde compramos duas passagens de trem para Londres. Dover situa-se a cerca de 120 km de Londres. A moça do guichê, meio constrangida, ainda nos disse, pedindo desculpas, que o nosso trem para Londres estava atrasado. Cinco minutos. Ao chegar em Londres, desembarcamos na Saint Pancras Station, situada no centro e conectada à rede de metrô. Também é possível ir de Dover a Londres de ônibus, mas o trajeto de trem é bem mais rápido, pois não está sujeito aos constantes engarrafamentos de Londres.

 

Embora a rota que liga Inglaterra e França seja a mais concorrida, existem muitas outras, ligando a Inglaterra à Espanha, Holanda e países nórdicos. Algumas empresas que operam nestas rotas, como a Brittany Ferries, oferecem opções muito confortáveis para quem deseja aproveitar a noite para descansar, dormir com conforte e quando chegar estar com tudo a mil, pronto para pegar a estrada e continuar o passeio. Nestas travessias, passageiros geralmente podem optar por acomodações em poltronas reclináveis, cabines standard e cabines de luxo. Nos decks superiores há bar, lanchonete, restaurante tipo bandejão e restaurantes à la carte. A imagem ao lado foi feita numa destas cabines, numa travessia entre as cidades de Portsmouth e Saint Malo. Elas dispõem de banheiro completo, duas camas, uma pequena sala de estar, frigobar e televisão por satélite. O café da manhã é servido no próprio quarto, 30 minutos antes da chegada ao destino.


Cabine da Brittany Ferries

 

 


Corte esquemátido do terreno do Eurotunel

Mas foi em 1994 que tudo mudou. Naquele ano, um sonho acalentado e considerado impossível por séculos finalmente se transformou em realidade, com a inauguração da ligação terrestre entre Inglaterra e o Continente Europeu. Entrava em operação o túnel sob o Canal da Mancha e por ele transitavam trens em alta velocidade, levando passageiros, automóveis e carga. Nada mais seria igual dali em diante. O impacto que esta nova via trouxe aos transportes, à noção de distância entre os dois países, ao comércio e principalmente ao turismo foi imenso. Londres estava agora somente a duas horas de Paris, numa viagem ligando o centro das cidades com todo conforto. Muitos chegaram até a profetizar que as tradicionais embarcações estavam condenadas ao desaparecimento. Mas como sempre, o que determina o sucesso de qualquer empreendimento são os custos, e após passados os festejos e a euforia pela inauguração do Eurotúnel, seus elevados custos operacionais deixaram claro que continuaria a existir espaço também para os ferries, e que também ainda haveria muitos passageiros para eles.

 

Na verdade, o Eurotúnel não é somente um túnel, e sim três, dipostos lado a lado. Como mostrado no diagrama acima, os trens fazem a ligação França-Inglaterra por um túnel e a ligaçaõ Inglaterra-França pelo outro. No centro dos dois existe um túneis de menores dimensões, destinado a servir como serviço, apoio e escape, em caso de necessidade. O trecho central do túnel atinge 100 metros abaixo do leito do canal, e seu trajeto, embora não possa ser percebido pelos passageiros dos trens, sobe e desce algumas vezes, porque segue ao longo do terreno mais firme (representado no desenho abaixo pela cor verde) sob o canal. É o mais extenso túnel submarino do mundo. Mas não imagine que você vai sentir algo de especial ao atravesar o túnel. Para os passageiros a travessia é até mesmo monótona, e durante os vinte minutos que ficamos no interior do túnel, não se sente nada de especial. É quase como viajar de trem à noite.


Interior de um dos túneis do Eurostar

 

Ao lado, um corte do terreno representando as diferentes camadas de solo sob o canal. A llinha vermelha representa a trajetória do Eurotúnel, que chega a 100 metros abaixo do nível do mar.

 

Escolher a melhor forma de atravessar o Canal da Mancha e decidir se é melhor viajar sobre ou sob as águas é uma questão de gosto, tempo e custo. Para quem está a pé, a conveniência do Eurostar é imbatível, mas para conseguir bons preços é necessário planejar com antecedência. Já quem está com carro deve fazer as contas com cuidado, e provavelmente chegará à conclusão que é preferível ir até o litoral e embarcar num dos ferries da Stena ou P&O. A imagem ao lado foi feita embarcando no Eurostar, em Paris, Gare do Nord. Daquela vez estávamos sem carro, compramos o bilhete com antecedência de mais de um mês, conseguimos bons preços e a viagem saiu por um bom preço.



Eurostar

 Vídeo: Eurostar Partindo de Paris



Eurostar na Saint Pancras Station, Londres

As composições do Eurostar tem, em média, 18 carros, divididos em 1ª e 2ª classe, e um carro restaurante, totalizando 400 metros de extensão.  Para acomodar o trem, a histórica estação Saint Pancras (Londres), inaugurada em 1868, passou por uma grande reforma, recebendo uma extensão para acomodar o Eurostar. Ao contrário da partida (ou chegada) em Paris, que acontece pela superfície, a chegada (ou partida) do Eurostar em Londres é subterrânea. Como não existiam espaços livres para a construção das novas vias, decidiu-se pela construção de 30 quilômetros de túneis, passando sobre mais de duas mil propriedades, auto-estradas, doze túneis rodoviários, inclusive do metrô, e cerca de 600 redes de água, gás e esgoto. Também a travessia do River Thames é feita através de um túnel construído sob o leito do rio.  

 Eurostar: Interior do Trem

Ao lado imagem do interior de um dos vagões de segunda classe do Eurostar. A viagem dura pouco mais de duas horas, ligando a Gare du Nord, Paris à Saint Pancras Station, Londres. Há também frequências ligando França à Bélgica. Quanto o trem atinge a velocidade de 300 km/hora, e segue paralelo à uma auto-estrada francesa, é divertido olhar pela janela e ver carros e caminhões (que circulam geralmente a 150 km/h) ficarem para trás como quase como se estivessem parados. E se você está pensando que pode ser meio estranho andar de trem num túnel no fundo do mar, não se preocupe. A jornada é abstolutamente tranquila, igualzinha a qualquer outra viagem de trem. Veja diversos links úteis para as empresas que fazem transporte martítimo no Canal da Mancha e também para o Eurostar na página Sites Úteis.


Interior de vagão do Eurostar

Vídeo : Chegada a Londres (estação Waterloo, onde aconteciam as chegadas
antes da transferência para a estação St Pancras)


Canal da Mancha em fim de tarde

Talvez não sejam muitos os passageiros do Eurostar, que ao atravessar o Canal da Mancha cem metros abaixo do leito do mar, lembrem que sobre suas cabeças navegam grandes navios, sopram ventos e batem ondas. Melhor assim. É preferível lembrar que 1785 marcou a primeira travessia do Canal por um balão, 1875 viu acontecer a primeira travessia a nado e 1909 a primeira travessia por um avião. Os novos tempos começaram em 1986, quando Margaret Thatcher e François Mitterand assinaram o tratado decidindo a construção do túnel e se concretizaram em 1994, com sua inauguração. Desde então mentes e hábitos mudaram bastante e hoje o Canal da Mancha não é mais uma barreira de água, isolando a Inglaterra do resto da Europa. Se por cima continua com suas mesmas águas revoltas e ventosas, por baixo ele guarda um ótimo exemplo do que a moderna engenharia e a cooperação entre os países pode conquistar.


A idéia de construir um túnel sob o Canal da Mancha surgiu em 1802.
O desenho acima ilustra um projeto de Albert Mathieu, apresentado à Napoleão Bonaparte. Pelo projeto, carruagens puxadas a cavalo
iriam da França à Inglaterra pelo túnel, e respiradouros acima do nível da água garantiriam a circulação de ar em seu interior.